Quem depreda a Justiça: alguém com um batom ou os próprios ministros?
OPINIÃO
Por Deltan Dallagnol (*)

O show não pode acabar! Nesta semana assistimos ao recebimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da denúncia do segundo núcleo da trama golpista, aquele que envolve Filipe Martins. Esperávamos barbaridades, mas nossas estrelas supremas, desta vez, superaram-se. Violaram direitos de réus, de advogados e de jornalistas, diante dos olhos fechados e ouvidos moucos da OAB, como vou descrever. Assim, o STF deu seguimento ao show de horrores que começou no julgamento do recebimento da denúncia contra Bolsonaro — como já contei neste artigo. Na direção do macabro teatro, Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma do STF; no papel principal, o protagonista é, sem dúvida, o ministro Alexandre de Moraes.
Tudo começou dias antes, quando a defesa de Filipe Martins solicitou a Alexandre de Moraes autorização para viajar a Brasília e assistir ao julgamento. Filipe pediu o básico: circular livremente na capital, como já faz em sua cidade, Ponta Grossa (PR), já que as medidas cautelares impostas por Moraes determinam apenas o recolhimento noturno e nos fins de semana. Mas não: Moraes indeferiu o pedido e restringiu seus movimentos exclusivamente ao trajeto entre aeroporto, hotel e STF. E ainda avisou: nada de turismo, nada de atividades políticas, nada de ser fotografado ou filmado. Se violar qualquer uma dessas condições, é cana.
Nesse show, só faltou uma personagem: a Justiça. Essa, como sempre, foi barrada do lado de fora do Supremo. Não é à toa que ela permanece lá, sentada, sozinha, isolada, excluída, inerte… parecendo morta
O assombro na comunidade jurídica foi imediato — embora você só saiba disso porque eu estou te contando. Nenhum advogado garantista, ou membro do tal Prerrogativas (o famoso clube da impunidade), se manifestou sobre essa óbvia ilegalidade. Se Filipe pode circular e exercer atividades políticas em sua cidade, por que não em Brasília? E qual lei autoriza Moraes a prender alguém por ações de terceiros? A resposta é simples: nenhuma — mas Moraes não quer saber. Ele é a lei. Sugeri a Filipe Martins uma solução num um post no X: ele deveria ter ido ao julgamento fantasiado de Batman. Ou talvez de Coringa, o que cairia ainda melhor, já que representaria como o STF tem feito os brasileiros de palhaços. E porque tanto abuso faz a gente coringar. Teve até quem dissesse que Filipe deveria ir de burca, para não correr o risco de ser preso.
Chegado o dia do julgamento, foi a vez do diretor do show de horrores de Moraes, Cristiano Zanin, dar sua contribuição: mandou lacrar os celulares de jornalistas e advogados antes que entrassem no santo recinto da Primeira Turma. Sim, você leu certo: numa tacada só, Zanin impediu o exercício da advocacia — já que celular é instrumento de trabalho de advogados —, violando prerrogativas sagradas que ele, até ontem, defendia com unhas e dentes —, e impediu o exercício do jornalismo — os submissos jornalistas assistiram, calados, o STF rasgar na cara deles o direito constitucional à liberdade de imprensa. Mas vale a pena: depois da sessão, os jornalistas mandam um zap pros ministros pedindo um off, um comentariozinho sobre isso ou aquilo, e fica tudo certo. É um ganha ganha.
Zanin encarnou uma velha piada do meio jurídico: a de que o advogado, depois de indicado pelo quinto constitucional para assumir uma vaga de magistrado no Poder Judiciário, esquece que já foi advogado um dia. Pois bem: Zanin ou por essa metamorfose, só que a sua foi suprema. Esqueceu seus dias áureos como defensor de Lula na Lava Jato, quando gritava “Lawfare!” e brigava com Moro pelo direito de gravar audiências. Bastou virar juiz para protagonizar uma das mais grotescas violações das prerrogativas da advocacia já vistas. A imprensa até tentou, mas não conseguiu encontrar um único advogado que apontasse qual lei autorizava Zanin a fazer o que fez. Encontrou cinco que disseram que era ilegal — mas nenhum quis ter o nome revelado. Quem tem OAB, tem medo.
Falando em OAB: alguém viu esse animal em extinção no meio de tantas atrocidades? Aliás, alguém sabe onde vive a OAB? O que come? A Ordem até avisou que mandaria um “observador” para o julgamento — o que pareceu perfeito, já que a OAB só observa e não faz nada. Poderia mudar de nome para OOB: Ordem dos Observadores do Brasil. Ou ONRP: Ordem das Notinhas de Repúdio do Brasil. Porque foi isso que fez, depois que a monstruosidade de Zanin veio à tona: mais uma notinha de repúdio. Mas o que a OAB deveria ter feito, você pode me perguntar? A resposta é: tudo. Mas, principalmente, resistir. Só isso já seria mais do que a OAB fez nos últimos seis anos diante dos abusos do STF.
A OAB deveria ter se recusado terminantemente a obedecer à ordem de lacrar celulares — e impedido, inclusive, que aqueles dos jornalistas fossem lacrados. Deveria ter dado um show ainda maior que o de Moraes perante a imprensa. Deveria ter convocado conselheiros e advogados do Distrito Federal para protestarem no Supremo. Deveria ter conclamado os advogados do caso a abandonarem o julgamento, coletiva e imediatamente. Deveria ter exigido a presença do presidente do STF, ministro Barroso, para sustentar, na frente de tudo e de todos, aquela ordem ilegal. E, acima de tudo, deveria sair dali com uma notícia-crime por abuso de autoridade contra todos os envolvidos — além de pedidos de impeachment prontos para o Senado Federal contra os ministros que violaram a Constituição. Mas não foi dessa vez.
Ao que tudo indica, o tal observador da OAB honrou seu título: apenas observou. E teve o celular lacrado, como todos os outros. Talvez ele tenha pretendido imitar a Justiça, fazendo-se de cego para seus abusos. Fazendo ouvidos moucos, não deve ter escutado Moraes, em seu voto, repetir o que já fizera no julgamento de Bolsonaro: usar o palco para se defender de críticas e fazer política. Criticou a anistia e repetiu — ao vivo — uma pergunta feita dias antes por uma jornalista da GloboNews, que coincidentemente contou ter recebido a mesma pergunta no zap zap de um ministro do STF. Essa talvez tenha sido a maior surpresa de todas: ninguém poderia imaginar que Alexandre de Moraes é uma fonte suprema de jornalistas da GloboNews.
Nesse show, só faltou uma personagem: a Justiça. Essa, como sempre, foi barrada do lado de fora do Supremo. Não é à toa que ela permanece lá, sentada, sozinha, isolada, excluída, inerte… parecendo morta. Após o julgamento, a pergunta que ficou no ar é: quem está realmente depredando a Justiça? Alguém com um batom ou os próprios ministros do STF?
(*)Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18 anos, atuando em várias operações no combate a crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba.
Fonte: Gazeta do Povo