Morre Francisco, o primeiro papa latino-americano, que desejava uma “Igreja em saída”

O Vaticano anunciou, na madrugada de ontem, 21 de abril (5h35 do horário de Brasília), a morte do papa Francisco.
“Às 7h35 desta manhã [horário no Vaticano], o Bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e de Sua Igreja. Ele nos ensinou a viver os valores do Evangelho com fidelidade, coragem e amor universal, especialmente em favor dos mais pobres e marginalizados. Com imensa gratidão por seu exemplo como verdadeiro discípulo do Senhor Jesus, recomendamos a alma do Papa Francisco ao infinito amor misericordioso do Deus Trino”, anunciou Sua Eminência cardeal camerlengo Kevin Farrell.
O pontífice estava desde o início do ano com a saúde fragilizada por complicações respiratórias e ficou cerca de 40 dias hospitalizado para tratar um pneumonia bilateral, mas retornou para casa no fim de março. Durante a Páscoa, Francisco chegou a circular pela Praça de São Pedro de papamóvel, mas seu quadro de saúde era considerado novamente crítico no domingo. Os médicos que o acompanhavam disseram se tratar de um cenário delicado, acreditando agora se tratar de seu último adeus aos fiéis.
O papa enfrentava dificuldades respiratórias desde a juventude. Aos 21 anos teve o lobo superior do pulmão direito removido após uma pneumonia grave. O pastor que desde o primeiro dia de seu pontificado costumava encerrar suas reuniões e homilias pedindo “rezem por mim”, recebe agora a prece dos fiéis do mundo inteiro que se despedem dele, 12 anos depois de sua eleição para suceder Pedro no comando da Igreja.
Francisco foi o papa do diálogo, da “Igreja em saída”, das “periferias do mundo”, mas também um papa de controvérsias, o primeiro a enfrentar um mundo plenamente conectado pela internet e, portanto, com uma exposição midiática muito maior que seus antecessores.
Sua visão do que significa o papado poderia ser percebida muito tempo antes, quando em 2001, os jornalistas sca Ambrogetti e Sergio Rubin entrevistaram-no para uma biografia daquele que era então Arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio. Respondendo à pergunta “qual deveria ser o perfil do próximo papa?”, Bergoglio afirmou: “um pastor”.
Essa história é contada no prefácio do livro “El Pastor”, lançado em fevereiro de 2023 na Argentina, sem edição brasileira (a edição em português, das Paulinas, está disponível apenas em Portugal). Na sequência do livro, já se pronunciando como papa Francisco, afirmou: “Difícil imaginar, naquele momento, que doze anos depois me converteria nesse pastor: aquele que deve estar na frente do povo para indicar o caminho, em meio ao povo para viver sua experiência, atrás dele para ajudar os que ficaram de lado e, às vezes, respeitar sua intuição para buscar os melhores pastos”.
De fato, Bergoglio não parecia estar com o pensamento em Roma. No Natal anterior à renúncia de Bento XVI, ele estava se preparando para entregar o Arcebispado de Buenos Aires e iria se recolher em um dormitório no bairro portenho de Flores, “um quarto modesto, com uma escrivaninha, um armário e uma cama de madeira com colchão duro”, dizem os autores. Foi neste bairro que descobriu sua vocação religiosa, depois de uma confissão iluminadora, também foi onde abraçou “sua paixão futebolística pelo San Lorenzo e começou a gostar de tango e ópera”.
Antes de se tornar o primeiro papa latino-americano, e também o primeiro jesuíta, Bergoglio havia sido nomeado bispo titular de Auca e auxiliar de Buenos Aires pelo papa São João Paulo II, em maio de 1992, escolhendo como lema Miserando atque eligendo [tirado de uma homilia de São Beda o Venerável, citando o episódio evangélico da vocação de São Mateus, que em tradução livre significa “Olhou-o com misericórdia e o escolheu”], lema que levou também para seu pontificado 21 anos depois.
Esse parece ser um traço permanente de sua vida pastoral. Corrobora para isso que em 2015, o papa Francisco deu início ao Jubileu Extraordinário da Misericórdia, por ocasião do 50º aniversário do Concílio Vaticano II.
Na Igreja Católica, o Jubileu é o ano de remissão dos pecados, reconciliação, conversão e penitência sacramental, e ordinariamente ocorre de 25 em 25 anos. O último jubileu ordinário havia sido o de 2000, proclamado “no limiar do terceiro milênio” por São João Paulo II. Neste ano de 2025, a Igreja vive o Jubileu da Esperança, inaugurado por Francisco na última noite de Natal. O fim da peregrinação do papa neste mundo em pleno ano da esperança é profundamente simbólico para os católicos.
Biografia
Eleito papa aos 76 anos, Jorge Mario Bergoglio nasceu na capital da Argentina em 17 de dezembro de 1936, em uma família de imigrantes italianos. Seu pai, Mario, era contador, empregado na ferrovia, e sua mãe, Regina Sivori, era dona de casa, dedicada à criação dos cinco filhos.
Primogênito do casal, Bergoglio se formou como técnico químico e, mais tarde, entrou no seminário diocesano de Villa Devoto. Em 1958 ingressou no noviciado da Companhia de Jesus, fazendo sua profissão perpétua como jesuíta em 1973. Foi ordenado sacerdote em 13 de dezembro de 1969, pelo arcebispo Ramón José Castellano.
Tornou-se arcebispo de Buenos Aires em 1998 e cardeal em 2001. Marcado pela simplicidade e proximidade com as pessoas, era visto andando de transporte público durante os anos de seu ministério episcopal, morava em um apartamento e gostava de preparar seu próprio jantar. “Meu povo é pobre e eu sou um deles”, dizia.
“Não se esqueça dos pobres”
Foi essa frase que, dizem, o falecido cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes teria dito a Bergoglio que estava ao seu lado no conclave, em 13 de março de 2013, quando já se sabia que havia sido eleito. A frase sussurrada teria inspirado a escolha do nome “Francisco” em homenagem a São Francisco de Assis, “o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que ama e protege a criação”. A tônica de falar aos marginalizados, às pessoas das “periferias existenciais” da vida já era notada no início. Como costumava dizer, essas periferias existenciais são caracterizadas pelo “mistério do pecado, da dor, da injustiça, da ignorância e da prescindência religiosa”.
Durante o voo de volta da Jornada Mundial da Juventude em 2013 no Brasil [sua primeira viagem internacional como papa], Francisco deu mostras dessa mudança de postura, respondendo a uma pergunta sobre o clero homossexual feita por um jornalista, levantando as sobrancelhas disse “Se alguém é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”. A resposta foi bastante chocante na ocasião, mas também evasiva. Estaria ou não o papa acenando para a comunidade LGBT? Embora possa causar certa confusão, essa postura abriu um diálogo mais amplo com esta comunidade.
Ele não alterou, contudo, o ensino oficial da Igreja sobre a castidade ou mesmo aprovou bençãos para casais de mesmo sexo, mas enfatizou a necessidade de ser mais receptivo com os católicos homossexuais e se reuniu com alguma frequência com grupos e ativistas LGBT.
Essa abertura para vozes dissonantes foi frequente durante seu pontificado, confirmando seu desejo de que a Igreja buscasse um contato mais amplo com a sociedade, como um “pastor que tivesse o cheiro das ovelhas”, em suas palavras.
Combate a abusos
Francisco continuou o trabalho de seu antecessor no enfrentamento das denúncias de abusos sexuais cometidos por membros do clero. Já em julho de 2013, lançou uma reforma do código penal do Vaticano, agravando as penas contra as várias formas de abuso sexual.
A tentativa de sanar esse flagelo no seio da Igreja tem sido uma constante em seu pontificado. Em fevereiro de 2019, Francisco destituiu o ex-cardeal americano Theodore McCarrick, considerado culpado por abuso sexual contra menores e adultos. Ainda em fevereiro, o papa deu início a uma cúpula contra os abusos sexuais na Igreja. Na ocasião, deu a tônica das reformas que deveriam ser sugeridas: “Nenhum abuso deve jamais ser encoberto e subestimado, pois a cobertura dos abusos favorece a propagação do mal e eleva o nível do escândalo”, disse aos 190 representantes da hierarquia religiosa e aos 114 presidentes ou vice-presidentes de conferências episcopais reunidos em Roma.
Em 2023, o papa publicou uma nova versão do motu proprio Vos estis lux mundi, cuja primeira versão fora publicada em 2019 para prevenir e combater o fenômeno dos abusos dentro da Igreja Católica. A principal alteração diz respeito às responsabilidades dos leigos que são ou foram moderadores de associações internacionais de fiéis reconhecidos ou erigidos pela Sé Apostólica da Igreja diante de possíveis casos de violência, abuso de autoridade e sexual.
Essa atualização já era prevista, dado que se esperava um período de “teste” para a versão anterior que obrigava bispos a denunciar casos de abusos sexuais, prevendo inclusive que, caso não o fizessem, eles próprios poderiam ser considerados corresponsáveis pelo crime que ocultaram.
O motu propio também prevê que todas as dioceses do mundo implementem um sistema ível ao público para apresentar relatórios sobre as denúncias de potenciais casos de abusos sexuais, que devem ser examinados em um prazo de 90 dias.
Na prática, dois anos depois ainda é difícil fazer um balanço dos impactos de Vos estis na Igreja, uma vez que o nível de transparência das investigações tem dependido dos núncios apostólicos nacionais. Assim, enquanto em alguns países o processo é mais transparente, em outros, como os EUA, os trabalhos seguem em sigilo, impedindo que os fiéis saibam quantos foram os investigados por abuso e qual foi o desfecho do inquérito.
Ambientalismo
Na missa inaugural de seu pontificado, Francisco afirmou a necessidade de se “respeitar o meio ambiente em que vivemos e todas as criaturas de Deus”. Mais uma vez relembrando o Santo de Assis e tomando como inspiração um cântico dele que diz “louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”, o papa publicou a encíclica “Laudato si’” para esclarecer os fiéis sobre a temática ambiental.
A ecologia é um tema comumente associado à esquerda, mas não é novidade que a Igreja Católica se preocupe com a causa ambiental.
É fato que a Igreja até a primeira metade do século XX não havia sido muito insistente com o tema da natureza, mas tampouco as grandes catástrofes ambientais eram tão visíveis antes da 2ª Guerra Mundial, em que o poder do “homem sobre a natureza” começou a mostrar sua face mais nefasta.
O texto retoma pronunciamentos de papas anteriores sobre o assunto, acrescentando temas da Doutrina Social da Igreja, que prega que a centralidade da economia na pessoa humana, e não no mero dinheiro ou no consumismo desenfreado.
Laudato Si‘, embora aceite um certo consenso em matéria de diagnóstico sobre a questão climática, tem uma visão bastante conservadora sobre a temática, incluindo críticas ao aborto e a pesquisas com embriões humanos, além de trazer discussões sobre a relação do ser humano com o trabalho e os limites da liberdade humana.
Oito anos depois, Francisco voltou ao tema ambiental com a exortação apostólica Laudate Deum [Louvai a Deus], centrada nas mudanças climáticas. O texto traz citações do relatório do Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), para argumentar sobre os efeitos da ação antrópica no clima do planeta. “Vejo-me obrigado a fazer estas especificações, que podem parecer óbvias, por causa de certas opiniões ridicularizadoras e pouco racionais que encontro mesmo dentro da Igreja Católica.”
No documento, o papa alerta para a necessidade de um “caminho do cuidado mútuo”, com mudanças de hábitos de consumo, aliadas a grandes transformações políticas, diante de “um problema social global que está intimamente ligado à dignidade da vida humana”.
Sinodalidade e sínodos
Outra marca do pontificado de Francisco é a sinodalidade. São frequentes as suas declarações sobre as necessárias reformas da Cúria Romana, no que diz respeito à descentralização de decisões sobre a vida da Igreja. A promoção de sínodos — o último deles inclusive com o tema da sinodalidade — para a discussão de temas sensíveis foi uma das estratégias adotadas pelo pontífice para operar as mudanças necessárias na Igreja. Mas afinal, o que é um sínodo?
O Sínodo dos Bispos é uma instituição permanente criada pelo papa Paulo VI em 15 de Setembro de 1965, em resposta ao desejo dos Padres do Concílio Vaticano II de manter vivo o espírito autêntico formado pela experiência conciliar. Em suma, uma reunião de bispos para discussão de temas importantes para a Igreja.
O cardeal Mario Grech, Secretário Geral do Sínodo dos Bispos, considera que o caráter sinodal foi um dos principais dons de Francisco à Igreja, “a sinodalidade está no centro do seu coração porque ele é pastor, e eu acredito firmemente que não há rebanho sem pastor, como não há pastor sem rebanho”, afirmou ele em mensagem à Vatican News por ocasião dos 10 anos de seu pontificado.
Francisco, que deu início a quatro sínodos, quis também que leigos fossem ouvidos sobre seus pensamentos e dificuldades. Isso reflete a visão defendida por ele de que a Igreja seja, em primeiro lugar, um local de acolhimento e acompanhamento.
Ou em suas próprias palavras: “A palavra ‘sínodo’ contém tudo o que é necessário para compreender: ‘caminhar juntos’ (…) Caminhar juntos – leigos, pastores, bispo de Roma – é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática”, afirmou em comemoração ao 50º aniversário do Sínodo dos Bispos, em 17 de outubro de 2015.
Em seu papado dois sínodos chamaram grande atenção, o Sínodo Extraordinário sobre a Família e o Sínodo da Amazônia.
Em 4 de outubro de 2014, Francisco abriu o Sínodo Extraordinário sobre a Família. Foram muitos os temas discutidos durante os encontros: indissolubilidade do casamento, imigração, violência doméstica, acolhimento de homossexuais, ideologia de gênero e comunhão para casais de segunda união.
Havia alguma expectativa, sobretudo pela mídia progressista, sobre a comunhão para casais de segunda união, mas o documento resultante do sínodo, a exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, não alterou significativamente o entendimento da Igreja sobre esse tema.
De fato, o documento não afirma explicitamente essa alteração, mas o parágrafo 305 indica uma maior abertura: “por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”, afirma. Uma nota de rodapé acrescenta que “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos”, lembrando aos sacerdotes que “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor” e que “a Eucaristia ‘não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos’”.
O texto causou preocupação dentro da Igreja Católica. Quatro cardeais chegaram a explicitar formalmente ao papa suas dúvidas, numa carta que ficou conhecida como Dubia. Eles questionavam se houve mudanças no entendimento do que o papa João Paulo II havia dito em sua exortação apostólica Familiaris Consortio.
Os cardeais assinalaram no documento que “para muitos – bispos, párocos, fiéis –, esses parágrafos [especificamente do 300 ao 305] aludem, ou também ensinam explicitamente, uma mudança na disciplina da Igreja com relação aos divorciados que vivem uma nova união, enquanto outros, itindo a falta de clareza ou ainda a ambiguidade das agens em questão, argumentam, entretanto, que essas mesmas páginas podem ser lidas em continuidade com o magistério precedente e não contém uma modificação na prática e no ensinamento da Igreja”.
Ao menos publicamente, o papa Francisco jamais respondeu aos cardeais. O texto ficou muito marcado por essa polêmica embora contivesse reflexões importantes sobre a situação social atual, os elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família, caminhos pastorais para construção de famílias sólidas e a educação dos filhos.
Já o Sínodo da Amazônia chamou a atenção pela discussão sobre o diaconato de mulheres e a possibilidade da ordenação sacerdotal de homens casados, como forma de contribuir para a evangelização da região amazônica. O documento utilizado para iniciar as discussões já continha em si essas propostas. Alegava-se que as distâncias e dificuldades de o impossibilitam a presença de um sacerdote em cada comunidade, às vezes por longos períodos, sendo isso razão suficiente para alterar a disciplina da Igreja.
Também se temia que o sínodo, iniciado em outubro de 2019, resultasse numa visão mais internacionalista da Amazônia, o que chegou a preocupar o então presidente Jair Bolsonaro.
Uma nova comissão de estudos sobre diaconisas foi criada pelo papa Francisco após o Sínodo, mas o documento final, a Exortação Pós-Sinodal “Querida Amazônia”, publicada em 2020, foi contrária ou não mencionou essas propostas.
O documento, criticando os crimes ambientais de toda sorte e exigindo a proteção dos povos da região, afirma que a internacionalização da Amazônia a tornaria refém de “enormes interesses econômicos internacionais”. E manteve o ensinamento da Igreja sobre o celibato e a não inclusão de mulheres no clero, não sem agradecer o imenso trabalho realizado pelas mulheres na região.
“Na Amazônia, há comunidades que se mantiveram e transmitiram a fé durante longo tempo, mesmo decênios, sem que algum sacerdote asse por lá. Isto foi possível graças à presença de mulheres fortes e generosas, que batizaram, catequizaram, ensinaram a rezar, foram missionárias”, escreveu o papa.
Aventou-se ainda a possibilidade de se criar uma comissão especial para o estudo de um rito de uso exclusivo para a Amazônia, “de maneira autenticamente católica ao pedido da comunidade amazônica de adaptar a liturgia com sua visão de mundo, suas tradições, seus símbolos e seus ritos originários, pede-se à referida estrutura eclesial que estabeleça uma comissão competente para estudar a desenvolvimento de um rito amazônico”, conforme informado pelo site Vatican News.
Mas na Exortação Pós-Sinodal, o Papa Francisco sequer mencionou o termo “rito amazônico”, tampouco promoveu ações nesse sentido.
Pandemia e Guerra na Ucrânia
O papa Francisco também atravessou por momentos de grande impacto geopolítico. Em 2020, com o surgimento da pandemia de Covid-19, um severo lockdown foi imposto na Itália e em muitos outros países como forma de contenção da doença. O Papa realizou a benção Urbi et Orbi, comumente acompanhada por milhares de pessoas na praça da Basílica de São Pedro, sozinho.
Auxiliado por alguns poucos membros do Vaticano, numa noite escura e chuvosa, o papa pediu orações pelo mundo que sofria com a doença e as restrições de liberdade. Também rezou diante de um famoso ícone, chamado Maria salus populi romani [Maria protetora do povo romano], que teria sido pintado pelo evangelista São Lucas.
O pontífice trouxe uma mensagem de esperança para um mundo entristecido: “Com a tempestade, caiu a maquiagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso eu sempre preocupado com a própria imagem; e ficou descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, afirmou.
Francisco recordou ainda que a oração e o serviço silencioso eram “as armas vencedoras” diante da situação que o mundo vivenciava.
Outro momento marcante foi a consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, junto dos bispos do mundo inteiro, pedindo a intercessão da Virgem pela paz, após pouco menos de um mês do início da guerra entre os dois países.
O Papa disse na ocasião que quis, por meio desse gesto, levar a Deus, “através da Mãe d’Ele e nossa, o grito de dor de quantos sofrem e imploram o fim da violência”. Em carta aos bispos explicou também o motivo da consagração, afirmando que “a Igreja é fortemente chamada a interceder junto do Príncipe da Paz e a fazer-se próxima a quantos pagam na própria pele as consequências do conflito”.
A consagração da Rússia era esperada pelos católicos há mais de um século, pois foi anunciada desde as chamadas “Aparições de Fátima”, ocorridas em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial.
Proximidade com paróquia em Gaza
No Angelus de 8 de outubro de 2023, dia seguinte ao massacre comandado pelo Hamas, que resultou em 1,2 mil israelenses mortos e cerca de 250 feitos reféns, o papa afirmou acompanhar “com dor e apreensão” a situação de Israel. “Parem com os ataques e com as armas, e compreendam que o terrorismo e a guerra não conduzem a nenhuma solução”, disse, pedindo que “rezemos pela paz em Israel e na Palestina!”.
Preocupado com os reféns israelenses e com o sofrimento dos civis em Gaza, o papa pediu um cessar-fogo imediato por diversas vezes na região. No fim de 2024, ele se envolveu em atritos com o governo de Israel, ao criticar o país por “bombardear crianças” em Gaza. “Isso é crueldade, isso não é guerra”, disse.
Em um livro para o Jubileu de 2025, lançado em novembro, o papa escreveu: “De acordo com alguns especialistas, o que está acontecendo em Gaza tem as características de um genocídio. Deve ser cuidadosamente investigado para determinar se se encaixa na definição técnica formulada por juristas e organismos internacionais”.
Francisco também esteve sempre próximo da Paróquia da Sagrada Família em Gaza, única igreja católica no enclave, para a qual ligava todos os dias, até mesmo quando já estava hospitalizado. Em janeiro, após o acordo de cessar-fogo temporário, ele disse que os cerca de 600 fiéis de Gaza “estavam contentes”. “Eles me disseram: ‘Hoje comemos lentilhas com frango’, algo que não estavam habituados a comer ultimamente, só uns legumes”, contou no fim da audiência geral, aos presentes na Sala Paulo VI.
Algumas controvérsias do pontificado
O papa Francisco por vezes manifestou opiniões políticas favoráveis à esquerda, sobretudo latino-americana. O que causou alguma indignação entre crentes e não crentes. Por exemplo, em entrevista ao canal argentino C5N, concedida pouco antes de ser internado por uma infecção respiratória, em março de 2023, o papa Francisco defendeu a inocência de Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidente Dilma Rousseff (ambos do PT), dizendo que o primeiro foi condenado pela Justiça sem provas e que a segunda sofreu impeachment tendo “as mãos limpas”.
Na contramão disso, porém, quando a ditadura do esquerdista Daniel Ortega condenou um bispo nicaraguense a 26 anos e quatro meses de prisão, o papa Francisco condenou a “ditadura grosseira” do país, comparando-a à “ditadura comunista de 1917 ou a hitlerista de 1935”.
Também expressou confiança de que poderia haver uma mudança de regime na Venezuela, por conta das “circunstâncias históricas”, e de que incentivaria “possíveis soluções”. Em uma coletiva em agosto do ano ado, um mês depois de Nicolás Maduro reivindicar vitória nas urnas do país, mesmo diante de comprovantes mostrando a maioria dos votos para a oposição, o papa pediu que se trabalhasse pela paz. “Não tenho acompanhado a situação na Venezuela, mas a mensagem que daria ao governo é: dialogar e fazer a paz. Ditaduras não servem e acabam mal, mais cedo ou mais tarde”, disse.
Em janeiro deste ano, um dia antes da posse fraudulenta de Maduro, Francisco voltou a falar sobre a “grave crise política” venezuelana em seu tradicional discurso ao corpo diplomático de países dos cinco continentes. “É doloroso constatar que subsistem, sobretudo no continente americano, vários contextos de aceso confronto político e social.”
Não é demais dizer que as opiniões políticas do papa não são “infalíveis”, como erroneamente se crê em certos meios.
Algumas vezes, Francisco entrou em conflito com setores mais conservadores da Igreja, como em 2021, quando limitou a celebração das missas no formato pré-Concílio Vaticano II, por meio do Motu Proprio Traditionis custodes. Esse ato revogava a disciplina anterior, promulgada pelo Papa Bento XVI que dava ampla atuação para padres que desejassem rezar a chamada Missa Tridentina. “Em defesa da unidade do Corpo de Cristo, sou obrigado a revogar a faculdade concedida pelos meus Predecessores […] O uso distorcido que foi feito desta faculdade é contrário às intenções que levaram a conceder a liberdade de celebrar a Missa com o Missale Romanum de 1962”, justificou o papa.
Esse contraste entre os dois papas foi uma constante de seu pontificado. Muito em conta da sombra do Papa Emérito. A presença de “dois papas”, como costumavam dizer, embora a expressão não seja correta, acompanhou o pontificado por quase 10 anos. Os ritos fúnebres de Bento XVI foram presididos pelo próprio Francisco, em janeiro de 2023.
Ele mostrou-se ainda aberto ao ecumenismo, promovendo o diálogo com representantes de diversas religiões, como revela o encontro histórico com o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo, em 2016, quase mil anos após o Cisma do Oriente. Também foram amplas as queixas à participação de Francisco na celebração dos 500 anos da Reforma Protestante, durante sua visita à Suécia, em 2017.
Francisco deixará seu pontificado, mas sua influência no clero foi considerável. Segundo o Vaticano, o papa nomeou 149 cardeais do total de 252. Os cardeais são responsáveis pela eleição do próximo papa, e a possibilidade de um sucessor seu não pode ser descartada, já que, entre os 138 com menos de 80 anos (portanto aptos a participar de um conclave), 110 foram escolhidos por ele.
Ao longo de seu pontificado, Francisco escreveu sete exortações apostólicas e quatro encíclicas. Chegou aos 88 anos de idade bastante ativo, embora sofresse com problemas pulmonares e sua saúde tenha visivelmente se fragilizado nos últimos anos, necessitando de uma cadeira de rodas para se locomover ao final da vida.
A debilidade física, porém, não o impediu de fazer 47 viagens apostólicas internacionais, visitando mais de 60 países em todos os continentes. Em uma das últimas, a mais longa de seu pontificado, realizada entre 2 e 13 de setembro de 2024, percorreu 32.814 quilômetros entre Indonésia, Papua-Nova Guiné, Timor Leste e Singapura (o recorde ainda fica com João Paulo II, que percorreu 48.974 quilômetros durante 13 dias de 1986, visitando Bangladesh, Singapura, Fiji, Nova Zelândia e Austrália).
Seu pontificado ficou marcado pela abertura ao diálogo com os problemas morais, sociais e econômicos do mundo atual. Embora suas declarações por vezes tenham dado abertura a interpretações progressistas, manteve, quando preciso, uma postura mais enérgica na defesa de princípios caros à doutrina e à vida da Igreja.
Fonte: Gazeta do Povo – Por Rafael Salvi